(Sístole & Diástole) ou (Atrás dos olhos das meninas sérias)

Mais importante que a palavra é a textura - até mesmo porque a palavra (quase) nunca presta.

sexta-feira, março 31, 2006

guadalupe colou com saliva o sétimo selo numa sétima carta e não obteve respostas.

guadalupe está sentada em meu colo cativo. guadalupe está soprando as cinzas na janela. guadalupe quer a sorte e a resposta num só ato. guadalupe quer respostas. guadalupe está puxando meus cabelos exigindo-me respostas. está a arrancar meus cílios um-por-um, mordendo-me os pulsos, tecendo uma rede de maltratos. guadalupe diz que sim, diz que não, não diz nada. me olha com seus olhos moles, seus olhos de peixe e me fura com seus espinhos. guadalupe me obriga a engolir seus espinhos e me rasga o esôfago. guadalupe faz carinhos e diz que nunca mais me morde. guadalupe é mentirosa. guadalupe se esconde por entre meus cabelos e canta fados portugueses desafinadamente. guadalupe é meu fardo, o meu engano. guadalupe é simultânea, antes fosse antinomia. guadalupe em nada crê, é piromaníaca, cospe fogo em qualquer contrato de confiança com o mundo. guadalupe cospe fogo nos meus pés porque não quer que eu toque o chão. guadalupe é randômica, desnecessária. guadalupe desafia a necessidade. guadalupe é relativa, reativa. radioativa. guadalupe é uma mendiga, pisa com os pés sujos sobre os seus próprios passos. guadalupe anda em círculos e não enxerga o centro. guadalupe é vesga, cada olho seu toca um ponto inverso no universo. guadalupe tentou andar de salto e virou o pé. guadalupe é manca. vejam! guadalupe é manca e vesga. guadalupe é pobre também, perdeu tudo numa partida de xadrêz com a vida. guadalupe vendeu as roupas, as palavras, a bola, os brinquedos. guadalupe arrasta aos prantos uma boneca pelos cabelos. guadalupe não desgruda da boneca e dorme com ela embaixo da cama do mundo. guadalupe tem uma boneca que não fecha os olhos. guadalupe só tem a mim.

quarta-feira, março 29, 2006

Da sabedoria ou Take a walk on the wild side.

No meio do caminho da vida reta tinha um bueiro.

sábado, março 25, 2006

De Anima.

dessa minha vida gravada na pele,
dessas marcas dos dias, do ontem.
desses vinte anos de luz e sombra
o tempo passa pra onde?
se esconde na cicatriz do peito
nos sulcos que se formam no rosto
afirmando a ruga causada por efeitos
efeitos das causas segundas: intenções.
causas (d)eficientes que (de)formam
a carne e o ânimo.
meu corpo está em oferta e
a alma vendeu-se ao diabo.

(aquele que oferece o ópio e o vinho,
fazendo-me esquecer do seu velho pão amassado.)

Para João.

" Ó burgueses cheirosos! Sepulcros caiados por fora apenas. Fariseus do bom costume, da boa conduta, e da beleza de Outdoors e perfumarias. Ó defensores do bom trabalho, do pensamento instrumental, do Éthos do comer, beber e se acasalar. Ó galinhas, porque vim parar aqui, nessas dimensões pouco montanhosas e áridas? Ó burgueses do perfeito sorriso e da ciência confundida com inteligência. Ó seres sem abismos, máscaras sociais, pre-juízos formados, ontologizadores do humano, onde só há ninharias. Senhores, tem de haver algo além desse sono cotidiano após o almoço. Haver vida após vossas vidas. Haver perdão após vossos julgamentos.

Bem aventurados os que não dormem, os que tremem, os que choram, os que sucumbem, os que superam o sucumbir. Bem aventurados os párias, os singelos loucos, os que desconfiam, os que sorriem sem motivo e sozinhos. Bem aventurados os que não possuem casa, senão em si mesmos e ainda assim, por poucas estações. Provisórias, enfim... "

do meu irmão César.
(saído cesarianamente da mesma barriga que eu.)

domingo, março 12, 2006

"Quando a peónia floresce, ela ergue-se e afasta-se.
Está a dizer sim ou não?"

sábado, março 11, 2006

diga-me com quem andas, e eu cortarei seus pés.

Era cedo, ainda escuro, quase claro. O pão e o leite na porta, o jornal atirado na grama, o carro velho estacionado. Acordaram, e ainda em sonho vestiram a roupa limpa e cheirosa de sabão em pó concentrado. Comeram o pão francês, a manteiga sem sal, o leite desnatado. Abriram o jornal, mas não leram: é que estava molhado. Levantaram-se em promessas de frescor e brancura, se fez o dente escovado. Despediram-se mas não se olharam, saíram pela mesma porta, cada um para um lado. No caminho, os olhos nos pés em trajeto apressado, o cinza vencendo e o tempo nublado. Ao chegar no destino, o relógio atrasado e o ponteiro no peito, feito flecha, espetado. Entraram correndo com o sorriso morno dos dias, e o olhar seco, acostumado.
Cumprimentaram em voz baixa, e os bons-dias escondiam o ódio: filho-da-puta, vaca, desgraçado. Foram direto ao banheiro, e ao olhar no espelho, quem é você mesmo?, não se reconheceram, o reflexo estava embaçado. Num acesso de cólera, quebraram o vidro, o azulejo; e com a boca e a garganta, deram gritos e sussurros de parto sofrido: o feto agora era vivo, não mais abortado. Saíram pela porta de trás do destino, chamaram-no mesmo de "cu", ou um "escape de merda", indeterminado. Voltaram pelo caminho da ida, inversamente sobre os próprios passos já antes marcados. Na mesma hora chegaram em casa, se olharam em silêncio, e de sangue no olho, o plano estava traçado. Lambuzaram-se de tinta, sentiram o gosto da carne e quebraram o chão, o telhado. Implodiram a casa, e saíram descalços: cada um fez na rua a marca do pé no chão asfaltado. Levantaram vôo, as asas de cera batiam plenas e belas no céu estrelado. Sumiram em céu aberto, hoje pouco se sabe onde planam, e os planos de guerra no sol já tocado. Ficaram conhecidos como "demônios", "malditos", ela: uma vadia, ele: um bastardo. Cinicamente sorriam, e muito da chuva lá embaixo eram cuspes na cabeça dos homens, fluidos dos corpos, a taça de vinho derramado. Pulsão de vida! - diziam. Ela gargalhava e dizia baixinho em segredo: o profano que vem toda noite, e cheio de amores, molesta [sodomiza] o sagrado.

terça-feira, março 07, 2006

destruindo godot.

estou planejando um crime à serviço daqueles que não querem mais a expectativa e a ferida aberta da espera. procurarei godot no inferno fervente e tortuoso, nas águas escuras e frias lá embaixo, nos terraços dos prédios arranha-céu, no céu nervoso e arranhado pelas pontas desses tais prédios insidiosos, que inclusive atearei fogo num surto de piromania. godot há de estar na beira de alguma auto-estrada anonimamente fugitivo e fugidio. Paris ou Texas? sinto cheiro de godot nas roupas de cama da pensão onde me encontro há meses, estou no século passado lavando as mãos e as vestes sujas de sangue de mais uma cabeça decapitada. rio de minha irmã-lua Salomé dançando louca pelo quarto, com os pés se desfazendo em carne-viva, com os olhos fixos no chão e em repetições de puro mantra: “Que vermelhas são essas pétalas! Parecem manchas de sangue na toalha!”. sussurro que só quero e preciso da cabeça de godot, ainda que ela não me ouça. tento uma mensagem engarrafada em espumas de ameaças, com toda a verborragia típica dos desesperados. Atlântida ou Pasárgada? sei que godot está ilhado com medo dos tubarões que querem seu pescoço assim como nós que temos fome do escuro. corro como uma condenada e subo as escadas da torre mais alta da cidade, subo calada pensando nos satélites artificiais, nos paraísos artificiais, nas flores artificiais --- na cabeça arrancada e redonda de godot, todinha orgânica e pesada como um vaso de flores naturais. de cima da torre eu grito aos céus, explodo os ouvidos de deus e arrebento as harpas dos anjos com a força dos meus agudos. godot foi visto pela última vez sozinho num barco, no meio do rio - entre as duas margens. godot foi visto no deserto cativando uma raposa após uma longa conversa ao pé da macieira. godot estava nu, a comer maçãs com um casal naquele antigo jardim. "godot não tem mapa, não tem norte, nem relógio!" --- gritamos nós em uníssono. minha última estratégia: esperar godot na porta estreita do mundo, enforcá-lo com a linha do tempo até seu último suspiro gutural. assim a espera e a angústia se dissolveriam no eterno. alto lá! prevejo então que seria punida por mim mesma, e em processo autofágico me destruiria por completo.
então gritariam:
- godot não deveria ser morto! ele é o vir-a-ser que nunca vem!
e soprariam minhas cinzas como zumbis, mortos-vivos em auto-comiseração, entoando um coro: - matar godot é quebrar a espinha dorsal do Desejo. [você arrebatou o coração do mundo .]

domingo, março 05, 2006

o claro e o escuro.

clareio o pano-de-fundo,
pra amenizar o escuro
da escrita fundo-de-poço.
o reflexo escuro de mim,
a constância da queda
livre de pesar,
mas sempre,
um poço-sem-fim.