(Sístole & Diástole) ou (Atrás dos olhos das meninas sérias)

Mais importante que a palavra é a textura - até mesmo porque a palavra (quase) nunca presta.

terça-feira, janeiro 31, 2006

ainda a reluzir .

... Me perco assim nas memórias, que antes de representações, são reconstruções. Sem linearidade e território próprio, remonto os quadros e aumento o foco daquilo que me interessa, regulo a luz dos ângulos obscurecidos, e remendo aquilo que de súbito, me vem. As imagens carregadas de cheiros, tatos, gostos & músicas - optei pela memória caleidoscópica, plena. Eu quero tudo ao mesmo tempo agora ...

(...) A abstração dos pescoços duros na afirmação do dia que era pura promessa, sempre cumprida. Levantar contorcido e ainda entorpecido (se não fosse, teria sido) do carpete ou do (col)chão com os olhos cheios de areia, desencaixar-se dos braços e pernas pesados de sono e um sopro no ouvido, um beijo de nariz, o cabelo grudando no rosto melado de suor guardado de poucas horas atrás. Os pescoços duros que logo se relaxariam nas outras mãos e d-e-d-o-s. A vontade de beber o mar quando ia o sol, que se dissolvia nele inteiro, e flutuávamos na água cor de chocolate subtraindo mesmo o sal. Quase manso, o mar; e a pulsação submersa, De profundis, feito onda a crescer, a correr e a quebrar, se espalhando inteira em espuma branca. E outra, e mais outra, compondo um movimento que também era o de dentro: a velocidade a correr em fluxo e refluxo de se preencher. Estendida na grama cintilante, a coberta. A cabeça no colo, o joelho dobrado prendendo os pés, as mãos no cabelo, o olhar em direção vertical, pra cima o céu de dia, em descanso polifônico: as várias melodias a se encontrar no mesmo, no nosso tempo & espaço. El tango, golinhos no vinho e as palavras arrastadas na preguiiiiiiça do primeiro dia, depois da noite: A Noite: o amor em rizoma, descentralizado, a ecoar entre as coisas. Nômades a explodir as estrelas (...)

segunda-feira, janeiro 30, 2006

agora eu me livro de tudo
vou te livrando aos poucos
aos poucos te escrevo, me descrevo
vou juntando
tudo isso guardado num livro
num livro: livrando a gente do mundo
vou costurando as estórias
tecendo as lacunas com sopros de palavras
sem final prescrito.
a inocência:
[mas afinal, livrar-se é:
tornar-se livre
ou (fazer-se) livro?]

quinta-feira, janeiro 26, 2006

juventude trans-viada.

... e Coltrane parecia mais rápido do que de costume. parecia querer saltar pra fora daquela caixa preta incitando feroz, disposto a cometer crimes: dos mais pavorosos. o que faria eu (potencialmente hedionda) no meu quarto à meia-luz de abajour, à meia-noite marcada do teto do mundo? trancaria as portas abriria as janelas e desse terceiro andar pularia no telhado da casa ao lado, feito gato baldio. e Coltrane, mesmo que onda sonora, se olharia com orgulho no espelho da penteadeira antiga, lisonjeado com a inscrição na testa: corruptor de criançinhas.

terça-feira, janeiro 24, 2006

As margens da Alegria

"
(...)
O menino fremia no acorçôo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A vida podia às vezes raiar numa verdade extraordinária.
(...)
Assim um crescer e um desconter-se - certo como o ato de respirar - o de fugir para o espaço em branco. O Menino.
E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as satisfações antes da consciência das necessidades.
(...)
O Menino agora, vivia; sua alegria despedindo todos os raios.
(...)
O menino via, vislumbrava. Respirava muito. Ele queria poder ver ainda mais vívido - as novas tantas coisas - o que para os seus olhos se pronunciava. A morada era pequena, passava-se logo à cozinha, e ao que não era bem quintal, antes breve clareira, das árvores que não podem entrar dentro de casa. Altas, cipós e orquideazinhas amarelas delas se suspendiam. Dali, podiam sair índios, a onça, leão, lobos, caçadores? Só sons. Um- e outros pássaros- com cantos compridos. Isso foi o que abriu seu coração. Aqueles passarinhos bebiam cachaça?
(...)
Todas as coisas, surgidas do opaco. Sustentava-se delas sua incessante alegria sob espécie sonhosa, bebida, em novos aumentos de amor. E em sua memória ficavam no perfeito puro, castelos já armados. Tudo, para a seu tempo ser dadamente descoberto, fizera-se primeiro estranho e desconhecido. Ele estava nos ares.
(...)
(...)
(...)
Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podiam? Por que tão de repente?
(...)
Só no grão nulo de um minuto, o Menino recebia em si um miligrama de morte.
(...)
Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia. Abaixava a cabecinha.
(...)
Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era: já o vir da noite. Porém, o subir da noitinha é sempre e sofrido assim, em toda parte. O silêncio saía de seus guardados. O Menino, timorato, aquietava-se com o próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe alma.
(...)
Trevava.
Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vaga-lume. Sim, o vaga-lume, sim, era lindo! - tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se.
Era outra vez em quando, a Alegria. "

Guimarães Rosa


O Menino? O Menino sou eu a respirar o mundo.

quinta-feira, janeiro 12, 2006

extremidades + poeiras de estrela = transbordar.

que venham até mim as hienas os lobos as raposas os bichos ariscos e febris. os bichos e as feras da selva que pulsa inexplorada fervendo em inocente crueldade e derramando seiva cheirando à matéria viva. que me levantem até o galho da árvore mais alta pela jugular. cravando os dentes afiados os caninos pintados de vermelho já que o vermelho é a cor mais bonita e desconcertante. a cor da morte e da vida. nascemos pintados de vermelho do sangue daquela que nos lança ao mundo, e eles morrem antes de existir escorrendo no meio das nossas pernas das pernas das mulheres pelo óvulo não fecundado. a esperança mensal do útero que clama por um filho. todo mês eu traio meu útero jogando jorrando pra fora o óvulo. a esperança é um sentimento triste, a audácia não. estar à mostra com a jugular em meio aos lobos é como abrir as pernas, abrir-se à fecundação, com a diferença de que o filho é a própria sensação do dente que penetra a pele, de aceitação eterna das marcas que é estar VIVO --- das marcas belas e eternas de aceitação das feras. assim a jugular exposta é o rosto ao carinho do vento e a cara à tapa. a jugular é a irmã do pulso, e nessa direção nossos dentes apontam, já que de feras nosso centro escorre. há ainda o par de omoplatas pra emergências as asas das costas magras caso a lua abra as suas portas, o refúgio antes do sol entrar.
se não me entendes:
é que agora eu respiro imagens e amores. afundo a cabeça no colo da insanidade e me alimento do sal que ainda resta entre os dedos que apertaram as mãos do mar.

ao novo ano.

" É possível que estejamos condenados, que não haja esperança para nós, para nenhum de nós, mas se assim for, soltemos então o último e torturante uivo capaz de gelar o sangue nas veias, um berro de desafio, um grito de guerra. Fora as lamentações! Fora elegias e réquiens! Fora biografias e histórias, bibliotecas e museus! Que os mortos comam os mortos. Dancemos nós, os vivos, à beira da cratera, uma última e agonizante dança. Mas que seja uma dança!"

Henry Miller