(Sístole & Diástole) ou (Atrás dos olhos das meninas sérias)

Mais importante que a palavra é a textura - até mesmo porque a palavra (quase) nunca presta.

segunda-feira, dezembro 26, 2005

as sincronicidades: o que eu acabei de ler + os óculos escuros (...)

" - Oh, foi você mesmo quem o fez. Não compreende, meu ilustre senhor, que eu lhe agrado e tenho importância para você exatamente por ser como um espelho seu, porque dentro de mim há algo que responde e compreende o seu ser? Na verdade, todos os homens deveriam ser espelhos uns dos outros e responder-se e compreender-se mutuamente; mas os corujões como você são um tanto estranhos e caem facilmente no engano de acreditar que já não podem mais ler nem ver nada nos olhos dos demais, que isso já não lhes diz respeito. E quando um corujão encontra de repente um rosto que o contempla de verdade, sente nele algo assim como uma resposta e um parentesco, e se alegra, naturalmente. "

Hermínia falando à Harry Haller

(E eu com o pensamento no Igor, saudades do meu amigo lobo da estepe.)

domingo, dezembro 25, 2005

ses yeux dans mes yeux

vem e me fala dos olhos que você esconde por detrás desses óculos escuros. por detrás desse véu de matéria rígida, que me faz outra nessa tua visão escura e te faz outro quando interrompe o meu processo de te perceber. esses óculos escuros que reprimem os meus movimentos e fazem de você o meu algoz, do jeito que você quer - eu bem sei. isso é sobre os olhos que conduzem as intenções e movimentos de um outro corpo. assim, sem fitar os seus (olhos) e sabendo que me observas - sem saber aonde - me conduzo pelo espaço em desalinho tentando minimizar as mazelas, aquelas em que você pode se deter. é que você negou a linha reta e o dizer elementar, que vai de um olho ao outro, e optou pelo poder de me cegar quando não me permitiu acesso. não te esqueças da minha violência, sim, já bem gasta, eu sei bem. mas é que imploro, arranca já as máscaras antes que eu me vire ou te vire do avesso, e te faça mastigar e engolir cortante essas lentes de vidro negro. antes do meu sangue no olho, eu só precisava encarar pálpebras e pupilas : transverberar. aproveita a minha não-preferência a uma cor específica, pois após o olho revelado, sei que o azul verdadeiro azul descansa & reluz no fundo, ainda que os olhos negros. ojos negros.

descrições do bom velhinho (sem ironias - e romantismos).

O avô acorda no meio da noite, e de pijama azul, bengala em mãos, diz
"de si para consigo" (ainda que alguns ouvidos atentos ouçam) :
- A puta-que-pariu com esse amigo oculto!
E andando em desorientação, descabelado e cabisbaixo pela casa:
- Que anarquia filha-da-puta!

(Eu sentada, só observando do sofá vermelho, ao lado da grande família. Não pude perder a oportunidade de me solidarizar e parabenizar em pensamento a sabedoria árabe do mais lúcido de todos da casa. Vida longa ao meu querido vovô Nassif.)

sábado, dezembro 24, 2005

meu pseudo-haiku de hoje é :

Pombagirar (assim)
acaba sempre
em quiproquó (!)

terça-feira, dezembro 20, 2005

de tanto bater meu coraçao parou ---- memórias de noites remotas, em papel de pão.

a chuva. agora, nesse instante, escrevendo enquanto ela cai e faz meu coraçao bater na parede frontal e voltar com força pro seu lugar de origem - em movimento pendular, em velocidade que viola os códigos de transito, terra, agua, fogo e ar. acendo todas as luzes da casa, e ao chegar agora no quarto de computador, uma barata enorme perdida entre a bagunça do chao. não me atrevo a nenhum tipo de reflexao ou pulsaçao ou me situar atrás do pensamento ou fazer da barata a matéria do mundo ou dar vazao a uma ontologia sensualista à essa altura. essas coisas apaixonadas, à moda de G.H. - sem poesia ou encantamento algum, essa barata monstruosa simplesmente fez meu coraçao bater ainda mais forte na parede, e aumentar meu terror demoníaco sem conhecimento de causa.
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bate.
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assim, a barata continua a me fazer companhia, escondida nesse quarto bagunçado e estranho. uma garrafa d'água no fim e um colchao no chao é o que me é dado. sinto um nó, eu sinto muito. com seu olhar de inquisidor, que está agora me olhando, meu desespero, um observador: uma barata. assim como os pratos, as xícaras, as panelas, a roupa de cama, tudo aqui me espreita e me expulsa como uma impostora. nas gavetas as fotos antigas, cartinhas dos filhos crianças, e nessa noite de confusao é como se tomasse pra mim toda a história, o peso. é como se tivessem me trancado do lado de fora da casa. eu do lado de fora da mesma e da outra, sem saber precisamente que terceiro espaço & lugar possa ser o que me guarda . sem saber o que posso vir a ser nesse lugar. e agora aqui dentro, todas as janelas fechadas pela chuva de pingos grossos, monstruosos como a barata que me espia de algum buraco, representando o papel de um possível deus - o globo ocular do universo - um universo que pesa sobre os meus ombros e nao me deixa dormir nessa noite que eu nem sei se é de lua.
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-------- dorme criança, dorme.

sábado, dezembro 17, 2005

re-lendo com uma gravidade a mais nos olhos, mas ainda com um prazer infernal.

"Muito se teria de dizer sobre esse contentamento e essa ausência de dor, sobre esses dias suportáveis e submissos, nos quais nem o sofrimento nem o prazer se manifestam, em que tudo apenas murmura e parece andar na ponta dos pés. Mas o pior de tudo é que é exatamente tal contentamento o que não posso suportar. Após um curto instante parece-me odioso e repugnante. Então, desesperado, tenho de escapar a outras regiões, se possível a caminho do prazer, se não, a caminho da dor. Quando não encontro nem um nem outro e respiro a morna mediocridade dos dias chamados bons, sinto-me tão dolorido e miserável em minha alma infantil, que atiro a enferrujada lira do agradecimento à cara satisfeita do sonolento deus, preferindo sentir em mim uma verdadeira dor infernal do que essa saudável temperatura de um quarto aquecido. Arde em mim então um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela vida desregada, baixa, normal e estéril, bem como um desejo louco de destruir algo, seja um armazém ou uma catedral, ou a mim mesmo. De cometer atos temerários, de arrancar a cabeleira a alguns ídolos venerandos, de entregar a um casal de estudantes rebeldes os ansiados bilhetes de passagem para Hamburgo, de violar uma jovem ou de torcer o pescoço a algum defensor da ordem e da lei. Pois o que eu odiava mais profundamente e maldizia mais era aquela satisfação, aquela saúde, aquela comodidade, esse otimismo bem cuidado dos cidadãos, essa educação adiposa e saudável do medíocre, do normal, do acomodado. "
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Hesse - O lobo da Estepe

meus homens

esses são externos a mim
não há homem algum na gaveta
(que eu abro para o papel e a caneta - a carta)
nem na xícara de chá
(que é de maçã e canela, e preparo para.)
e nisso reside toda a graça
ele simplesmente não estar,
(mas invadir)
não uma estrela dada e permanente
mas aquela que cai
(e queima bem do lado esquerdo)
- rasgando o peito feito faca -

minhas mulheres

quardo nas paredes do quarto, dentro das gavetas, dentro dos armários, entre as dobras, no nó do sapato, na matéria vocal da palavra, na maneira de se comportar dos ombros, das mãos, do andar. guardo uma espanhola nos pulsos, e no leque que esconde a metade tímida do rosto. uma japonesa guardada no ouvir e no calar, no silêncio que não é mudez, mas assentimento. uma francesa na cavidade bucal da petulância cínica e orgulhosa, na exigência de entrada, prato principal e sobremesa. uma árabe no sobrenome e no olhar: é que olho com olhos de Nassif, num casamento ancestral entre as cidades de Damasco e Beirute. carrego uma índia no nome e no desejo dos pés na terra úmida: é que Maíra é nome de índio. Escondo muito bem uma sem pátria, na errância e no desprezo pelas âncoras: essa (em mim) me respira.

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Guardei as algemas na gaveta
e rezei de modo que os joelhos
- apoiados no genuflexório-
gemessem e gritassem de dor.

Me levantei, acendi todas as velas
do candelabro,
quebrei todos os santos da berlinda num só ato.
Me deitei por entre os cacos,
qual um faquir em dias de jejum sagrado.

É que Sade e os ascetas andam lado-a-lado
visitando os quartos e as salas,
as correntes da indigência e os lençóis
dos santos e dos bardos.

Assim como as mãos que
se fecham em galhos de espinhos
e depois se purificam no sal, no mar salgado.

Abençoando o casamento entre o seio sacrossanto
e o pior dos sádicos: (O ato de pungir como extensão
do olhar no rosto missionário.)

quarta-feira, dezembro 14, 2005

rua catarina de castro, em juiz de fora, década de 60.
um tal "tio careca" como as crianças o chamavam, uma delas é meu pai.
tio careca estrangulava gatos, estrangulava de tanto amor. não sabia o que fazer com aquelas belezuras inofensivas nas suas mãos carentes e excitadas. o que lhe restava? te amo tanto a ponto de te destruir.
"tio careca matou mais um gato?"
"matou e enterrou embaixo de um pé de amor-perfeito, no jardim."

sagrada família

às pessoas da casa, eu digo que os nervos não são de aço, mas de uma linha mais fina que um fio de cabelo. às pessoas da casa que cultivam rancores, niilismos, desamores. às pessoas da casa doentes de ódio, doentes de si mesmas, doentes de tristeza. às pessoas da casa com as suas pilulazinhas soteriológicas, as suas gotinhas que adiam a auto-implosão iminente. às pessoas da casa que fazem do cachorro o único poupado, o incondicionalmente amparado. às pessoas da casa que batem a porta na cara, pisam batendo os calcanhares no chão como quem mostra os dentes ao pior inimigo. às pessoas da casa que pensam ter razão ao enfiarem na sua boca o sofrimento que sentem, e berram e gritam "engula, engula!" como o sêmem nojento de um homem egocêntrico (e por isso mesmo solitário) - porque você tem que ser solidário, ter compaixão. às pessoas da casa que cobram sem olhar no seu rosto, cobram porque. porque sim. às pessoas da casa que só olham pros rostos da novela, gritam as vespas nos seus olhos, sem saber se estão molhados ou não. as pessoas da casa e as suas chantagens, chantagens emocionais, espirituais, materiais --- passionais. às pessoas da casa e as suas fugas, suas taquicardias, suas falta-de-ar, porque somatizam tudo, guardam no corpo a pobreza de ontem. às pessoas da casa que murcham as flores com a sua secura de pedra. às pessoas da casa que esfregam na sua cara a "lei do retorno" como se fosse uma mulher feia e velha à te esperar na esquina mais próxima. às pessoas da casa e as vozes graves e agudas, cheias de dores gravemente crônicas e repetidamente agudas. às pessoas da casa, uma casa suficientemente grande pra três pessoas, pequena demais quando as suas próprias sombras apertam e comprimem os rostos de cada uma contra a parede. às pessoas da casa, bebam mais água e menos café sem açucar.

domingo, dezembro 11, 2005

aniversário

" (...)
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio
(...) "

(Pessoa)

sexta-feira, dezembro 09, 2005

tudo começa na varanda daquela casa da cadeira de balanço & o vento, único a ter coragem de fazer ir-e-vir a cadeira velha. a casa de varanda e balanço abandonado, a luz que esqueceram acesa - uma lâmpada triste naquele sol mais triste ainda. em frente a casa, uma árvore que se encosta em mim quando passo, uma árvore que me estende a mão quando fico. me sento no meio-fio e encosto a cabeça, que me disseram ser estranha demais. estranha demais, a cabeça?
uma forma muito feia e deselegante de se referir às compulsões de alguém, às pulsões de vida&morte que me disputam. (rasgo uma folha, fibra por fibra). e a estranheza, torna-se bela por um viés estético, é simples demais, como aquela cadeira vazia e a varanda vazia e aquela luz acesa em pleno sol, de deixar marcas no rosto. e quanto à estranheza que eu mesma sinto, transformo-a em recortes e fragmentos que guardo numa caixa de madeira pintada à mão, embaixo da cama, onde também guardo meus fetiches sagrados - melhor: perfidamente sacralizados. e antes de dormir, como quem se olha no espelho pra se reconhecer, espalho os fragmentos pela cama e afirmo 3 vezes sem tristeza o sentimento imenso de desconhecimento, tudo sem nenhuma dor. apenas vou montando pedaços que me dão algumas pistas, traduzindo alguns desenhos que fornecem memórias e o cheiro de pedaços de pano, que exijo em troca de. os pedaços de pano, que coleciono pois nunca se sabe o dia de amanhã. tenho costurado uns aos outros intencionando uma colcha de retalhos. nunca se sabe o frio de amanhã.
(começa uma música vinda da casa de varanda & cadeira de balanço, uma música triste, um piano - é alguém tocando) é que, sabe, todo esse desconhecimento, e essa música linda e triste.
(enfio com força a mão na terra em que mora a árvore) é que, toda essa lacuna me nutre demais, mas por vezes me engasga e me cala. se alimentar sempre da mesma coisa, me torna improdutiva feito terra quando se nutre do mesmo. hoje, portanto, eu desejo toda a fome do mundo. o mesmo e a repetição do mesmo, as várias formas de dizer o mesmo - pela fome serei obrigada a buscar o outro, a outra matéria e a outra forma de envolvê-lo em mim. é me arrastando e despedaçando e raquiticamente me doendo. (a luz da varanda se apaga e retiro as mãos sujas da terra avermelhada e úmida). e os poucos que me acompanham nem perceberão, na verdade nunca percebem, mesmo quando com todo o zelo me dão o braço e diligentemente me dão a mão. ainda assim eu amo e digo pra sempre amém. (a cadeira parada me provoca um incômodo imenso, quando pego uma pedra e miro no seu encosto, ela balança 1,2,3,4 - algumas vezes, com força.) me levanto, encho os pulmões de ar e solto leve pela boca. onde meus pés me levam, esqueço que já sei (finjo que não sei) - pra me surpreender depois.

quarta-feira, dezembro 07, 2005

se você soubesse o que (se) passa desse lado de cá, se as gargalhadas que eu ouço fizessem de fato um efeito corpóreo, eu viraria uma bailarina. como não fazem, restam as alegriazinhas das esquinas, do corpo parado que se derrama adulto na xícara de café. é que estou cansada, lê-se: e estou cansada. lê-se: o afinco me esgota, e a saudade da metade que não exige a outra parte, a saudade do começo que não exige um fim, simplesmente você sai de cena, sem culpa - num despedir simples com a concha das mãos, e um desajeito inocente ao pensar que te vêem dando as costas.
e as gargalhadas que eu ouço não fazem um efeito corpóreo porque não são verdadeiras, porque elas mentem como eu minto pela dor, porque no escuro, ao tatearem nossa face, não verão diferença alguma entre uma e outra (as faces). daí você dirá que o tatear é justamente o critério mais precário, e daí eu direi, meu bem, em termos de alegria e dor, o rosto de uma outra pessoa é aquilo de mais relevante. a relevância do rosto de uma pessoa, isso era um pacto (ainda é?).
aqui em casa já começaram a distribuição das culpas de fim de ano, aquilo que cabe às costas de cada um, e aquilo que deve ser restituído ao outro para que não acumulemos mais karma.
enquanto isso eu vou regando as flores, um pé de pimenta dedo-de-moça, e uma pequena mudinha, que lhe recusarei um nome - em nome do acaso.
(acreditando que assim vou redimindo meus pecados.)

sábado, dezembro 03, 2005

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .
— Respire.

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— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Manuel Bandeira