(Sístole & Diástole) ou (Atrás dos olhos das meninas sérias)

Mais importante que a palavra é a textura - até mesmo porque a palavra (quase) nunca presta.

domingo, janeiro 30, 2005

my funny valentine

À você eu ofereço o que há de mais tímido
À você a vida lhe parece ingrata,
clareando o que há de mais tolo
supurando todo o fel contido.
A boca nunca é mais que um engano,
Jorrando sangue e plasma em vão
[Derramando]
Fazendo inveja do amor sabido
Sem dúvida e sombra,
clareado, invasivo.
Como ela que chega já se desfazendo
Caminhando em passos tortos e
tontos de fastio
Cheiro mel que contamina interno
Chama impura entre
[os joelhos e folhas de caderno]
Indiferença que carrega a covardia
Meu juízo cheio de, todo ressentido
Ira e imprudência por simples falta de
[capacidade]
À você eu ofereço toda
a carne pura, vermelha e saborosa
que ultrapassa e acorrenta
[a condição escura]

quinta-feira, janeiro 20, 2005

blue angel

quando eu disse que tudo era incêndio e pegava fogo e queimava de um jeito ardente, e que eu amava toda a fumaça, e respirava pela boca todo o estrago mesmo quando meus olhos ardiam e lacrimejavam, isso tudo era verdade. quando eu disse dos meus medos e das minhas sujeiras e da minha fraqueza da forma mais sincera possível olhando nos seus olhos e implorando e pedindo pelo amor-de-deus pra você dar algum sinal, eu nunca fui mais verdadeira. quando eu chorava pateticamente na sua frente quando você beijava meu rosto daquele jeito, assim mesmo com o nariz, e tão suave, e tão belo e tão lado esquerdo. isso mesmo, meu lado esquerdo nunca explodia tanto nunca fazia tanto barulho e tanta cosquinha como se soltasse fogos e reluzisse até o topo. quando eu disse que você é a minha melhor textura, a pele preferida, o pelo mais veludo, era tudo verdade. quando eu chorei um dia inteiro (e eu nunca chorei tanto) e criei fantasmas desnecessários e insanos, mas absolutamente insanos e absolutamente perturbados e te escrevi através de um buraco do peito que eu abri com as unhas pra você não ter dúvidas -porque eu tinha as minhas- e eu sabia que o buraco seria eterno mesmo se alguém ousasse costurar ou se você tentasse fechar com a saliva ou com todo o seu amor, hoje eu mancho os lugares por onde eu passo porque não há como estancar o sangue com meu espírito de hemofílico, e esse é o preço que eu pago pra sempre. tudo isso era verdade, o drama, o medo, e toda a selvageria que não apela pra razão, bem feito.
todos os meus abraços de rodoviária e as noites em claro e ansiosas de espera, ou os telefonemas rápidos querendo ouvir qualquer coisa, qualquer qualquer, ai que raiva quando liguei pro seu trabalho e você não estava, mas eu não ia falar nada mesmo, uma música do cartola que eu não me lembro qual iria falar por mim. tudo, tudo era verdade, a falta de ar e os sorrisos sem contexto, as tentativas de surpresas. quando eu dizia do seu olhar, e disse na primeira carta, que era um olhar que eu nunca tinha visto antes na vida, um olhar que parece vazio mas é tão cheio que eu me afogo nesse mistério todo. e ele me perturba tanto e me deixa tonta e perdida sem você saber. verdade. quando o tempo e o espaço me sufocavam e eu abria os olhos de tristeza dos não sei quantos kilometros que nos separam e eu nunca fiz questão mesmo de saber, mas são 8 horas de tempo perdido, de tempo sacana, 8 que na horizontal é um infinito cruel e culpado filho-da-puta. verdade toda essa ira de ma-ira. quando eu tremia de tanta poesia eu queria prosa também e ficava tão feliz quando conseguíamos fundir os dois, como rio que desagua no mar, e eu pulava de cabeça nessa água gelada e refrescante que me fazia esquecer de toda a aridez que me cerca. porque eu odeio aridez, odeio, odeio e odeio. verdade.
quando nossa escrita se tornou orgânica e você se tornou Louise e se inscreveu de vez no meu corpo(a tatuagem transparente) foi quando comecei a dançar pra você acompanhando o pulsar cardíaco e passei a respeitar incondicionalmente a carne que pede. listen to my heartbeat. ah, minha Louise, inscrita no corpo até o osso, eternamente, desde o primeiro, até o último selo. eu juro. quando eu insisto em dizer da nossa história, como uma saudosista, eu tenho um orgulho desgraçado das cartas e dos bilhetes, de cada letra, de cada desenho, intenção. quando eu lamento a ausência do carteiro nos últimos tempos e mesmo sabendo que nada, ainda insisto em olhar pela fresta da caixa de correios pra ver se algum pedaço seu está lá. verdade. quando eu escrevi do seu silêncio, que é quase um decreto de que devemos todos também nos silenciar por algum motivo especial que só você conhece, e que ele como o seu olhar é um mar profundo e manso e grave, tudo verdade. quando eu disse que você sabe melhor do que ninguém como um corpo deve ser tocado e que querendo ou não, você vai além, assim, no limiar daquilo que nem é mais corpo. eu amei demais essa verdade. quando eu te lembrava pra você não se esquecer das entrelinhas e pedia pra você arrancar de mim sem medo as pequenas verdades, com os dentes mesmo, porque minha danação se daria se você abrisse mão dessas verdades, eu nunca falei tão sério.
agora, nesse exato momento, a verdade é que eu não sei o que fazer com isso tudo, porque eu mesma não me tenho mais...me dei toda sem perceber, numa entrega perigosa, de sangue. nua de mim mesma é a minha condição. a verdade é que o paradoxo mais mordaz é que eu quero abrir mão de tudo eu não quero abrir mão de nada. os anjos azuis dizem amém sem perceber. (e eu acendo velas pra ninguém).

quarta-feira, janeiro 12, 2005

intitulável

A chuva lá fora. A falta de comunicação, a impossibilidade de comunicação, a hipertrofia de necessidade de comunicação. O silêncio que não é mudez, a condição lancinante de um tema eterno, como tortura chinesa. O dia hoje passou lento, pingando através de um conta-gotas em terra cansada*(causa) e infértil(consequencia) e ainda por cima escassa(inaptidão). Hoje o cactus quis ser tulipa e virar a ampulheta derramando todo o deserto de areia seca.

*uma terra pode tornar-se infértil quando nela exerce-se o plantio de uma mesma coisa por diversas vezes; perde-se assim seus sais minerais.

***** querendo ser macabéa

E enfim ela deitou e dormiu - mas não descansou - depois de um dia de trabalho debaixo do sol perpendicular de quarta. Sonhou que iriam encontrá-la (lê-se resgate, salvação, libertação, até mesmo amor), alguém que a estava procurando desde sempre, no fundo daquele coração dilatado ela sabia que o grande dia haveria de chegar.
x dias depois seu corpo foi encontrado em um terreno baldio, na periferia da cidade, onde estava sendo construído um conjunto habitacional que iria beneficiar famílias vítimas de sabe-se-lá. Ela estava com uma flor nos cabelos e as unhas cortadas, os lábios ainda sujos do vinho barato que havia tomado horas antes do fato, estavam entre o roxo e o vermelho. Estava tão bela que a usaram como garota propaganda de uma marca de creme hidratante, antes de ser enterrada numa vala comum no cemitério municipal, sem direito a nem um cravo sequer.