(Sístole & Diástole) ou (Atrás dos olhos das meninas sérias)

Mais importante que a palavra é a textura - até mesmo porque a palavra (quase) nunca presta.

quinta-feira, setembro 14, 2006

" "

i) primeiro ela veio
com a mudez
carregando nas mãos
um pássaro
caído do ninho -
desagregado.

ii) n'outro dia foi a vez
da sombra
que na terra
não podia ser pisada
por ninguém
mas na água do mar
naturalmente
se desfêz.

iii) depois veio-me com rosas
presas aos cabelos
com os espinhos
afiados
derradeiros
o corte
de matéria orgânica
bem na nuca.

iv) a menina trapaceava
trouxe uma vela
acesa
pra ninguém
e orava e entoava
um salmo
pro escuro infinito sem
deus.

v) atrás dos olhos
onde era coração
como uma
sala de cinema sem
público
um filme noir
exibido
pras cadeiras
vazias.

vi) o tipo da semente
plantada no solo
fértil
é segredo -
o que
não vestiu a roupa
apertada
da palavra
[é sagrado].

vii) e
da semente
nasceu um gêiser
um
pequeno vulcão
de água -
a água
queimando a terra

viii) a água
que explodiu
e
não se recolheu
depois de
derramada.

ix) liquefeita
abriu as mãos
e o pássaro
abriu as asas.

quarta-feira, setembro 06, 2006

oráculo.

LavourArcaica

“... e embora caído numa sanha de possesso vi que meu irmão, assombrado pelo impacto do meu vento, cobria o rosto com as mãos, era impossível adivinhar que ríctus lhe trincava o tijolo requeimado da cara, que faísca de pedra lhe partia quem sabe os olhos, estava claro que ele tateava à procura de um bordão, buscava com certeza a terra sólida e dura, eu podia até escutar seus gemidos gritando por socorro, mas vendo-lhe a postura profundamente súbita e quieta (era o meu pai) me ocorreu também que era talvez num exercício de paciência que ele se recolhia, consultando no escuro o texto dos mais velhos, a página nobre e ancestral, a palma chamando à calma, mas na corrente do meu transe já não contava a sua dor misturada ao respeito pela letra dos antigos, eu tinha que gritar em furor que a minha loucura era mais sábia do que a sabedoria do pai, que a minha enfermidade me era mais conforme que a saúde da família, que os meus remédios não foram jamais inscritos nos compêndios, mas que existia uma outra medicina (a minha!), e que fora de mim eu não reconhecia qualquer ciência, e que era tudo só uma questão de perspectiva, e o que valia era o meu e só o meu ponto de vista, e que era um requinte de saciados testar a virtude da paciência com a fome de terceiros, e dizer tudo isso num acesso verbal, espasmódico, obsessivo, virando a mesa dos sermões num revertério, destruindo travas, ferrolhos e amarras, tirando não obstante o nível, atento ao prumo, erguendo um outro equilíbrio, e pondo força, subindo sempre em altura, retesando sobretudo meus músculos clandestinos, redescobrindo sem demora em mim todo o animal, cascos, mandíbulas e esporas, deixando que um sebo oleoso cobrisse minha escultura enquanto eu cavalgasse fazendo minhas crinas voarem como se fossem plumas, amassando com minhas patas sagitárias o ventre mole deste mundo, consumindo neste pasto um grão de trigo e uma gorda fatia de cólera embebida em vinho... ”

Raduan Nassar