carta à ninguém.
doçura,
meus dias tem sido retos, sem sinuosidade, sem necessidade de saltar por cima das poças, porque elas não existem mais. limparam todas as folhas secas que faziam o chão desde o outono. portanto, meus dias tem sido de asfalto, bem assentado - sem brechas, sem margens à qualquer desvio. deveria estar satisfeita, aliviada, já que não me canso mais com os morros, a lama, o cascalho. agora que consigo fazer da corda bamba um instrumento de divertimento! quase uma artista de circo, daqueles exercícios de aéreo. por falar nisso, é tão bonito aquele...o exercício chama-se tecido. pendura-se um pedaço enorme de tecido no teto e com ele faz-se as coisas mais bonitas. voa-se, e isso sempre me remete à um bicho tecendo uma teia. por falar em teias, outro dia sonhei que estávamos no alto de um prédio, tecendo um tapete enorme com linhas coloridas que saíam de dentro de uma gaiola. não queira entender. minha interpretação é a seguinte: na verdade penélope não sai da minha cabeça! tecer, tecer esperando, até que a noite chegue e se desmanche para que no dia seguinte teça tudo outra vez. por fidelidade à ulisses. uma esperança tão obstinada(tola?), sendo que ulisses chega 20 anos depois. as linhas engaioladas, são as esperanças (tolas?). engaioladas, pela vontade que engole todo tipo de reflexão, é a prisão cega, a paixão. não queira entender. mas no sonho não desmanchávamos o tapete. ele crescia, crescia. até que. não queira entender. falando em paixões, sempre desconfiei daqueles que não as consideravam e exigiam que estas se curvassem perante à razão. ainda desconfio, desconfio desse despir-se, desse afastar-se de si, dessa reflexão desinteressada e fria, frígida. paixão é condição. mas, ouça-me, não me entenda errado, a cegueira também me causa desconforto. na verdade acho que minha condição é a seguinte: passional com os cerebrais e cerebral com os passionais. admito o abismo que isso gera. mas não se espante. porque eu nem mais me espanto. a questão toda se resume em uma palavra: irresolução. você acha triste? eu não.
queria escrever-te há tanto tempo! desde a sua última carta, que acredite, fui vê-la em cima da mesa enquanto ouvía aquela música. depois de ler, peguei o mozart, meu cão carente e o mais novo epiléptico da região (meu irmão chama-o de dostoiévski, eu às vezes de ian curtis), e passeei com ele um pouco pelo bairro, às seis da tarde. o meu horário, você sabe. do crepúsculo sem escrúpulos, cheio de segredos.
queria dizer mais, são tantas coisas! mas preciso andar, o sino toca.
amor,
guadalupe