Jamais réel et toujours vrai
"Realismo ingênuo
O homem do nosso tempo acredita francamente que sua informação filosófica e histórica o salva do realismo ingênuo. Em conferências universitárias e em conversas nos cafés, chega a admitir que a realidade não é o que parece, e está sempre disposto a reconhecer que seus sentidos o enganam e que sua inteligência constrói uma visão tolerável porém incompleta do mundo. Cada vez que pensa metafisicamente, sente-se "mais triste e mais sábio", mas sua confissão é momentânea e excepcional, enquanto o contínuo da vida o instala de cheio na aparência, concretiza-a em torno dele, veste-a de definições, funções e valores.
Esse homem é um ingênuo realista, mais que um realista ingênuo. Basta observar seu comportamento frente ao excepcional, o insólito: ou o reduz a fenômeno estético ou poético ("era algo realmente surrealista, te juro") ou desiste, em seguida, de buscar na entrevisão que ganhara um sonho, um ato frustrado, uma associação verbal ou causal fora do comum, uma coincidência perturbadora, qualquer das fraturas instantâneas do contínuo.
Se o interrogam, diz que não crê plenamente na realidade cotidiana e que somente a aceita de maneira pragmática. Mas lógico que crê, é só em que crê. O sentido de sua vida assemelha-se ao mecanismo de seu olhar.
Às vezes tem uma efêmera consciência de que a cada tantos segundos as pálpebras interrompem a visão que sua consciência preferiu entender como permanente e contínua; mas quase de imediato o pestanejar volta a ser inconsciente, o livro ou a maçã firmam-se em sua obstinada aparência.
Há como um acordo de cavalheiros entre a circunstância e os circunstantes: você não me tira dos meus costumes e eu não fico cutucando o senhor com um palito. Mas o problema agora é que o homem-menino não é um cavalheiro, mas um cronópio que não entende bem o sistema de linhas de fuga graças às quais cria-se uma perspectiva satisfatória dessa circunstância, ou, como sucede nos collages mal feitos, sente-se em uma escala diferente com relação à da circunstância, uma formiga que não cabe em um palácio ou um número quatro em que não cabem mais que três ou cinco unidades.
A mim isto ocorre claramente, às vezes sou maior que o cavalo que monto, e outros dias caio dentro de um dos meus sapatos e sofro um golpe terrível, sem contar o trabalho pra sair, as escadas fabricadas nó a nó com os cordões e a terrível descoberta, já na ponta, de que alguém guardou o sapato dentro de um guarda-roupa e que estou pior que Edmundo Dantés em um castelo de If, porque nem sequer há um padre à mão nos guarda-roupas da minha casa.
E eu gosto, e sou terrivelmente feliz em meu inferno, e escrevo. Vivo e escrevo ameaçado por essa lateralidade, por esse paralaxe verdadeiro, por esse estar sempre um pouco mais à esquerda ou mais ao fundo do lugar onde se deveria estar para que tudo se materializasse satisfatoriamente num dia a mais de vida sem conflitos. "
Julio Cortázar


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