diga-me com quem andas, e eu cortarei seus pés.
Era cedo, ainda escuro, quase claro. O pão e o leite na porta, o jornal atirado na grama, o carro velho estacionado. Acordaram, e ainda em sonho vestiram a roupa limpa e cheirosa de sabão em pó concentrado. Comeram o pão francês, a manteiga sem sal, o leite desnatado. Abriram o jornal, mas não leram: é que estava molhado. Levantaram-se em promessas de frescor e brancura, se fez o dente escovado. Despediram-se mas não se olharam, saíram pela mesma porta, cada um para um lado. No caminho, os olhos nos pés em trajeto apressado, o cinza vencendo e o tempo nublado. Ao chegar no destino, o relógio atrasado e o ponteiro no peito, feito flecha, espetado. Entraram correndo com o sorriso morno dos dias, e o olhar seco, acostumado.
Cumprimentaram em voz baixa, e os bons-dias escondiam o ódio: filho-da-puta, vaca, desgraçado. Foram direto ao banheiro, e ao olhar no espelho, quem é você mesmo?, não se reconheceram, o reflexo estava embaçado. Num acesso de cólera, quebraram o vidro, o azulejo; e com a boca e a garganta, deram gritos e sussurros de parto sofrido: o feto agora era vivo, não mais abortado. Saíram pela porta de trás do destino, chamaram-no mesmo de "cu", ou um "escape de merda", indeterminado. Voltaram pelo caminho da ida, inversamente sobre os próprios passos já antes marcados. Na mesma hora chegaram em casa, se olharam em silêncio, e de sangue no olho, o plano estava traçado. Lambuzaram-se de tinta, sentiram o gosto da carne e quebraram o chão, o telhado. Implodiram a casa, e saíram descalços: cada um fez na rua a marca do pé no chão asfaltado. Levantaram vôo, as asas de cera batiam plenas e belas no céu estrelado. Sumiram em céu aberto, hoje pouco se sabe onde planam, e os planos de guerra no sol já tocado. Ficaram conhecidos como "demônios", "malditos", ela: uma vadia, ele: um bastardo. Cinicamente sorriam, e muito da chuva lá embaixo eram cuspes na cabeça dos homens, fluidos dos corpos, a taça de vinho derramado. Pulsão de vida! - diziam. Ela gargalhava e dizia baixinho em segredo: o profano que vem toda noite, e cheio de amores, molesta [sodomiza] o sagrado.


4 Comments:
que honra,
minha amada desconhecida.
:*
que bonito, maira.
que bonito, maira.
Pinga sangue! adorei!
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