(Sístole & Diástole) ou (Atrás dos olhos das meninas sérias)

Mais importante que a palavra é a textura - até mesmo porque a palavra (quase) nunca presta.

domingo, julho 30, 2006

Palavras em conserva para todas as coisas do mundo.

Na cidade do interior, onde brincavam nas praças com bola de meia, e nos comunicávamos por meias-palavras, e caminhávamos sem medo de carros no meio da estrada de terra batida, morava o menino. Que quando criança acordava todas as manhãs com um beijo de café na testa, um abraço de avental sujo de queijo e fubá, e olhares negros de feijão cozido na panela de pressão, todas as manhãs. O menino que ia brincar atrás da casa, no terreiro junto às galinhas, essas que ocupando seu tempo livre, logo lhe ocupariam o estômago, associação lembrada e esquecida, lembrada e esquecida, mas que não o impedia de mastigar sem culpa, e num movimento de dentes e língua, empurrar aquela massa homogênea goela abaix0. Atrás da casa passava a linha do trem, que agora ocupando a parte livre da linha do tempo de seu dia, logo lhe ocuparia as linhas dos cadernos que eram preenchidas por desenhos multicores e rabiscos à caneta preta. O menino deitado na linha do trem, enquanto enrolava a linha do seu papagaio à uma latinha velha de metal, tudo isso enquanto não ficava pronto o almoço, enquanto não vestia a roupa limpa em branco e azul-marinho da escola de primeiro grau. Até aí, ele mesmo lavava os próprios cabelos, enxugava o próprio corpo e escrevia suas próprias estórias de menino inventado, manobras de passarinhos e baterias para as luzes de vaga-lume. Quando chovia e enquanto trovejava, ele acendia a lamparina e em acessos de nervosia gritava e gritava alto pra não ouvir a colisão das nuvens, que segundo ele faziam terremoto, eram as placas tectônicas do céu. O menino afogava o sono em leituras e lia, e lia, e ia, indo com as palavras e se perdendo nos lugares e cheio das profecias, imaginava já o fim, largando-se aos próprios pensamentos, e quando via o livro já estava caído pelas suas mãos amolecidas nas pernas dobradas de índio. O menino afoito, afeito às perguntas sobre pessoas e coisas, "que há mais no mundo que podemos ver e pegar, senão coisas e pessoas? montanhas, água, cadeira, dedos, flor... eu, você, todos nós, o avô..." As categorias do mundo do menino - coisas e pessoas. Mas existiam também o que não podíamos ver, "as coisas invisíveis que faziam efeitos no corpo", e que segundo ele estavam entre as coisas e as pessoas, eram os sentimentos das pessoas sobre as coisas e sobre outras pessoas: "aquela vertigem, a raiva, o medo do trovão, o amor pelo pai, a mãe, o irmão". Mas pensou também nas palavras, que quando saem da boca não podemos pegar, e quando não são escritas, muito menos olhar. As palavras poderiam então ocupar a gaveta das coisas invisíveis e das coisas visíveis; era tudo uma questão de preferir falar, tagarelar como fazia sua mãe, cantar como fazia a tia, "ainda bem que não podemos ver! já basta ouvir tanta tagarelice, tanta sandice, tanta esquisitice!". Era tudo uma questão de preferir falar, o que mantinha a palavra invisível, ou escrever, que como mágica fazia o papel se encher. "Mais educadas as palavras escritas", pensou. "Não invadem silêncios, nem se impõem sem que a gente queira. Eu posso fechar os olhos, mas não desligar os meus ouvidos!", sorriu depois de pensar. E gostava de passar a mão de pele fina em busca da textura do papel quando todo ele era escrito em caneta preta, as palavras agora entravam na gaveta das coisas visíveis e tateáveis. [Repensou nas palavras faladas que lhe doíam mais que tudo, quando não queria falar e quando não queria mesmo ouvir! Ambas as vias eram violentas, retirar de si a palavra adormecida, bem aconchegada no canto da boca ou vagando dormente e indistinta entre os pensamentos, assim como a invasão de palavras alheias, desestruturando e acordando brutalmente suas meninas, exigindo reação, resposta imediata e associações corretas entre uma palavra e outra, entre as palavras e as coisas (...) Um dia mudaria seu nome e não contaria a ninguém! Quando o chamassem pelo nome antigo não teria obrigação alguma de responder. Assim como adoraria mudar o nome das coisas. "O objeto mesa agora se chama sozinhês." Poderia? Quem é proprietário? Quem é o zelador que mantém a palavra agarrada sempre à mesma coisa?]. Mais uma vez pensou, mais um desses lampejos que lhe davam quando na janela, ajoelhado na cama e apoiando o queixo sobre as mãos; pensou então que as palavras poderiam entrar numa dessas gavetas que estão entre as coisas e as pessoas, já que as pessoas dizem das coisas por palavras; a palavra era uma ponte entre as coisas e as pessoas. Mas não era um sentimento como a raiva, o prazer ou a dor. "Mas como? palavras são coisas visíveis, coisas invisíveis e ao mesmo tempo estão entre as próprias coisas e as pessoas, tal como sentimentos?" Podem estar também entre pessoas e pessoas, quando essas falam das coisas do mundo ou das coisas pessoais, "assim, só pelas palavras alguém saberá da dor que eu sinto, já que a minha dor, ninguém vê". Sem resolver a querela, pensou também numa palavra que como os sentimentos ["essas coisas invisíveis que faziam efeito no corpo"], lhe causava um tremor, uma palpitação, um segundo de frêmito como quando o trem passa ligeiro rasgando o silêncio e tremendo a terra em que se assenta a pequena casa. A palavra ______ lhe causava uma espécie de tremor de terra, e ele aliviado, sorria depois que ela passava feito um trem bala; sentindo-se despenteado sem estar, ajeitou os cabelos negros com a ponta dos dedos de menino. Pior ainda agora, que as palavras estavam na gaveta das coisas invisíveis, das coisas visíveis, das coisas que estão entre as coisas e as pessoas ["que espécie de coisas eram essas, afinal?"], e ainda na gaveta das coisas que faziam efeitos no corpo ["palavra-sentimento? palavra com efeito corpóreo?"]. Sentiu necessidade imensa de arrumar as gavetas, tal como fazia todos os anos, quando jogava montes de papel no lixo, e encontrava objetos perdidos, e se deliciava com os brinquedos e memórias acenando lá do fundo escuro, escurecido pelo tempo que passava sempre implacável, conduzindo seus interesses e desinteresses. Seria então a última tentativa em acomodar as palavras nas suas valiosas gavetas. Palavras dizem das coisas, das pessoas, e das relações das pessoas com as coisas, e das pessoas com as pessoas, e da pessoa sozinha com a pessoa, e das coisas com as coisas. Palavras dizem delas mesmas. Delas mesmas? "Sim, como agora". E exausto com as palavras que pareciam querer ser ponte de tudo, pareciam querer engolir o mundo, invadir cada canto escuro e mínimo das coisas, ao invés de fascínio e devoção, ele sentiu raiva, uma revolta com esse império que se manifesta quando se escreve, quando se fala, quando se pensa! Até essa revolta era por meio de palavras, até o insulto, o ato de praguejar, maldizer as palavras era por meio de palavras! Pensou na gramática, nos plurais, nos singulares, nos compostos, derivados, pensou no dicionário e naquele amontoado de palavras em ordem alfabética; abriu na palavra "palavra" e a definição pareceu-lhe inofensiva, pobre, pouco drástica. Fechou o dicionário e sentindo-se oprimido, perseguido, palavra, palavrão, palavrório, palavreado, palavroso, palavrada. E nesse turbilhão de palavras-pensamento, palavras-sentimento, palavras-escritas, palavras-faladas, palavras-anti-palavras, ele adormeceu escondendo a cabeça entre os joelhos magros [joelho: que era uma palavra, uma coisa - mas não uma coisa independente! era uma coisa que só era quando fazia parte das pessoas. que espécie de coisas eram essas?]. Passaram-se algumas horas e despertou com pingos de chuva molhando a cama, respingando a testa, esfriando os pés. Despertou mais calmo e afastou os pensamentos que insistiam, que pareciam bater com força à porta de sua cabeça, arrombar as janelas do torpor de menino recém-acordado. Levantou da cama, calçou os chinelos e silencioso viu que era noite; foi então até a cozinha, um copo d'água e pensativo, pensava em nada e nesse modo de não-pensar [que pode ser representado por aqueles chuviscos numa televisão quando não sintonizada], afogou os dedos no saco enorme de arroz e até o cotovelo, lá ficou por algum tempo. A água, o arroz, apenas duas dentre as tantas coisas nesse mundo de coisas. D'um cômodo próximo à cozinha, um som corria suave e alcançava sem violência seus ouvidos frágeis de menino. Suspirou de sono e quase novamente adormecido, estremeceu por não saber explicar, enpalavrar, embalar com as tantas palavras que sabia, a sensação que lhe provocava a música daquele bandoneón - uma milonga! - docemente tocada pelo seu avô. E sorrindo, debruçado nos joelhos, era o menino enternecido e alegrado com a ponte quebrada que era a não-palavra entre a pessoinha que era, e "aquela espécie de coisa que era a música. Mas que espécie de coisa é essa? que parece vibrar e espraiar por entre as outras tantas coisas e ---"

1 Comments:

Blogger M. said...

o meu menino é bem esse, assim desse jeito, de se esconder por horas embaixo das folhas secas dessa Lavoura Arcaica, compadecido com as formigas que bravamente carregam folhinhas verdes, e cortam caminho pelo seu corpo de menino. Nessas horas o menino silencia, e se concentra na pele que parece dar pequenas gargalhadas, se concentra nesse toque fino que é a caminhada das formigas. a palavra ele esconde embaixo da terra com os dedos de menino, e colhe esse mesmo pomo com o gosto do imediato.

4:32 PM  

Postar um comentário

<< Home