Primeiro e último registro explicitamente auto-biográfico neste espaço.
Desabafo prosaico: Mamãe e papai quando ainda casados, mantinham coleções de livros e vinis. Juntos compraram a coleção inteira dos Pensadores, aquela, de 1978. Muito tempo depois, se separaram. Mamãe manteve a guarda dos filhos e papai foi embora. (não entrarei em detalhes). Mamãe e seus 2 filhos mudavam sempre de casa, umas vezes por necessidade e outras por mero capricho, creio que uma certa nostalgia nômade. Memória atávica, já que temos o sangue árabe. Tais mudanças eram sempre trabalhosas, visto a quantidade de livros que eram mantidos de posse da pequena família. Eram caixas e mais caixas de livros. Parênteses: Quando pequena, me lembro do tal "Jogo da Amarelinha" na estante do quarto, e achava tanta graça em um livro com um nome desses. "Mas como? Jogo da Amarelinha?". Mal sabia eu que depois seria lisonjeiramente capturada por este. O meu kibbutz. Da mesma forma Florbela Espanca, como pode alguém ser violentada pelo próprio nome? Hoje me acostumei, e penso que não poderia haver nome melhor pra essa mulher. Fecha parênteses. E era isso o que mais dava trabalho nas mudanças: esvaziar as estantes, colocar nas caixas, esvaziar as caixas, colocar nas estantes. Por conta de uns problemas de saúde da mãe-eminência, fomos obrigados a ficar um tempo na casa da minha avó, e conosco foram as caixas de livros. Depois de recuperada, mamãe e seus 2 filhos e os livros mudaram para um apartamento. E depois pra outro. E depois pra outro. E depois pra outro. Somados, os filhos e as caixas de livros constituíam um peso muito grande pra essa vida de mudanças da mãe, sozinha e tão pequena. Como não podia abrir mão dos filhos, num acesso de loucura e irreflexão e insensatez e irresponsabilidade e inconsequencia inclassificável, fez aquilo que seria o maior erro de sua vida: deu, presenteou, doou, ofertou ao seu irmão toda a coleção Os pensadores, aquela, de 1978. Tal fato ocorreu exatamente um ano antes do seu filho mais velho iniciar-se no curso de filosofia, e 3 anos antes da sua filha mais nova seguir o mesmo caminho. (pra desgraça da mãe, que desenvolveu uma terrível antipatia pela filosofia, por conta das conversas travadas entre seus dois filhos, onde ela se sente excluída) Hoje a mãe morre de culpa e admite a falta, embora não tenha coragem de pedir de volta a coleção, que está lá, imponente na estante do irmão, que acredita em mônadas. E os dois deserdados sofrem calados. O filho tem vergonha de pedir emprestado quando necessita de algum volume. A filha-eu, sem pudores como sou, numa afirmação implícita de que não abrirei mão do que me é de direito, pego emprestado todo semestre alguns volumes. A pilha cresce aqui em casa. O irmão que não cultiva apegos, adverte: cuidado.
Hoje apareci no território inimigo de surpresa, fui resgatar Kant e Hegel. O tio desconfiado e perspicaz diz com ares de graça: "Só está levando aos pouquinhos, hein! (...) Essa coleção já foi da sua mãe, e blablabla...". Mantive a seriedade e uma face desinteressada - nem pedi que me fosse deixado de herança - dirigi-me à estante, e calada com ares de locatária fiz parecer só mais um empréstimo, enquanto ele entregava-se ao papel de um dândi de biblioteca.


1 Comments:
Hahaha, me lembro dessa história. Certo dia, você contou-a a mim.
Beijos.
Daniel Arelli
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