infante

Depois de procurar o caderno por todos os cantos do quarto todas as gavetas todas as portas e frestas. Abandonado e desescrito, cheio de sombras de palavras, vestígios de vontades e letras ao avesso. Meu (caderno) que foi filtrado pelo rigor e pela falsa elegância a ponto de só sobrarem magras virgulas, como se estas se bastassem ou fossem as únicas a cumprir as exigências- nojentas. Recuperei meu (caderno) - agora nele eu ando descalça, com os pés sujos de lama e as unhas descascadas de vermelho, o rosto assimétrico e o cheiro, aquele cheiro feito de tristeza e ternura. Nele eu desenho formas geométricas e corpos exaustos e o tempo descompassado em movimento desacelerado - tudo com fluidos do meu próprio corpo, compacto. Nele, agora, eu colo fotos de pessoas antigas, de cor branca-e-preta, pessoas que foram aquilo que eu desejo ser - porque eu desejo. Colo paisagens desconhecidas, de lugares que eu tenho saudades e bancos de praça vazios e ruas escuras de dar medo - de propósito. Nele eu me debruço, subindo e descendo até o limite do prazer sem limites, da pressão atmosférica da pressão cardíaca. Nele eu não espero encontrar ninguém, espero encontrar a palavra, e que seja sagrada e clandestina, que venha do túmulo das minhas insanidades ou do colo das minhas doces certezas. Nele eu gravo todos os sons, os ruídos de passos, os estalos de línguas e o suspiro quase sem nota daqueles. Gravo as músicas dos meus minutos, a gravidade das horas densas e a leveza da ironia sem graça. Nele eu crio listas de prioridades, traço planos de vida e de morte, invento salmos da mais pura blasfêmia e faço viver quem repousa por entre as minhas dobras sem nem saber. Dele eu expulso sistemas, desmancho princípios e justificações que existem só para o alívio de quem as tem. Nele eu não me importo com incômodos ou jogos de contradição, aqui eu abro as pernas e os braços aos gênios malignos, aos enganadores e ao precipício. Nele eu sou só fluxo, me transformo em derrame, escorro por um buraco no meu próprio peito - onde enfiaram a faca e rodaram sete vezes. um. dois. três. quatro... Aqui eu me despeço da unidade e deságuo e me enfio por entre as curvas da mais estranha e desconhecida alteridade.


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nuh
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