decifra-me ou devoro-te.
ela dizia que se sentava no asfalto pra esperar, porque já tinha se acostumado, desde pequena quando contaram-lhe a história de um tal godot. tinha se acostumado a esperar estóica e resignada. ela dizia que quando caminhava pelas ruas vazias, pisava fundo no chão, até que nele abrisse um buraco e abalasse a estrutura de todo tipo de obstáculo ao redor. ela dizia que era difícil ser criança, mulher, menina, senhora, era difícil andar reta era difícil andar firme e manter, era difícil se manter a mesma. a mesma menina de sempre. era tão difícil que ao chegar em casa ela tirava a máscara na entrada, como tiram os orientais os seus sapatos. pendurava as armaduras e o olhar seguro no cabide atrás da porta, e caminhava exausta até o sofá de veludo rosa, onde repousava os olhos e gemia como um cão sedento.
ele dizia que caminhava pelas ruas pra negar a imobilidade, como quem finge pra si mesmo que nunca espera, mas que sempre é aquele que chega. e pisava leve na grama de pés descalços sem pensar em nada e sem olhar pro lado, como que não sente medo. ele era a pura paciência, não se despia de nada ao entrar em casa, apenas deixava as chaves na mesa de canto da sala. não se orgulhava dos seus rituais, nem via grandeza de espírito na introspecção voluntária. era do tipo que ligava o abajour e fazia de conta que suas gotas homeopáticas eram psicotrópicos, pouco antes de dormir.
eram vizinhos do mesmo andar, dividiam a mesma parede, com baixo isolamento acústico.
ela ouvia tangos e boleros passionais, acreditando ser a florbela espanca pós-moderna, coitada! (além de alimentar em si o puro embate do orgânico contra o sintético).
ele música clássica, sem o mínimo pudor e culpa por misturar chopin à agua e ao sabão, enquanto lavava os pratos de um jantar que dera na noite anterior, um jantar de fumaças e insinuações. o que era pra ter sido uma orgia alimentar se transformara numa orgia de gritos e sussurros. gritos e sussurros que ela acompanhou desde o começo grudando os ouvidos na parede compartilhada, de baixo isolamento acústico. acompanhou como se fosse uma história infantil contada antes de dormir, as imagens - ah! as imagens! - eram inteiramente por sua conta. imaginava narizes, somente narizes e olhos, imaginava pessoas pisando nas costas das outras e marcas de cigarro na pele de todos, de todas. se imaginava deitada de costas no tapete da sala caso houvesse lá um tapete- de fato não sabia do chão duro que a esperava se estivesse mesmo ali - se imaginava dessa forma enquanto iam deitando um por um sobre seu corpo magro. e ela ia perdendo o ar, perdendo o ar, mas calada e perdida e feliz em meio ao roxo que ia tomando seu corpo(como quando se afunda um pincel com tinta numa água límpida), até que morresse, até que saíssem de cima, até que todos a vestissem e soprassem fumaça - também felizes - em sua cara mansa (de morte bem-vinda).
Mas ele não era nada grave, e sim a pura recusa, a pura indiferença ao drama e aos apelos de quem berra.


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